segunda-feira, 29 de junho de 2009

Todo mundo que vale a pena conhecer - Capitulo 2



2


Era muito azar meu que a festa de noivado de Penelope caísse em uma quinta-feira à noite — a noite do jantar marcado com tio Will e Simon. Nenhum dos dois compromissos podia ser ignorado. Fiquei parada em frente ao meu prédio feio, do pós-guerra, em Murray Hill, tentando desesperadamente escapar para o enorme dúplex do meu tio em Central Park West. Não era hora do rush, Natal, mudança das mãos das ruas nem chovia torrencialmente, mas não havia nenhum táxi à vista. Eu estava assoviando, gritando e pulando para o alto como uma louca há vinte minutos sem sucesso, quando um táxi solitário finalmente encostou no meio-fio. A resposta do taxista quando eu pedi para ir para o centro foi "Muito trânsito", antes de cantar os pneus e desaparecer.
Quando um segundo motorista finalmente me pegou, acabei dando cinqüenta por cento de gorjeta, de puro alívio e gratidão.
— Ei, Bettina, você parece triste. Está tudo bem?
Eu insistia com as pessoas para que me chamassem de Bette e a maioria chamava. Apenas meus pais e George, o porteiro do tio Will (que era tão velho e fofo que podia fazer qualquer coisa), ainda insistiam em usar meu nome inteiro.
— Só os problemas normais de táxi, George — suspirei, dando-lhe um beijinho na bochecha. — Como foi o seu dia?
— Ah, ótimo como sempre — ele respondeu sem o mínimo sarcasmo. — Vi o Sol por alguns minutos de manhã e estou feliz desde então. — Nojento.
— Bette! — ouvi Simon chamar da sala de correspondência escondida discretamente na portaria. — Estou ouvindo a sua voz, Bette?
Ele emergiu da sala de correspondência de uniforme branco de tênis, uma bolsa em forma de raquete atravessada nos ombros largos e me deu um abraço de urso como nenhum homem hetero jamais fizera. Era um sacrilégio faltar a um jantar semanal, que além de ser divertido também me dava o máximo de atenção masculina que eu recebia (sem contar o brunch).
Will e Simon haviam desenvolvido vários rituais ao longo dos quase trinta anos que haviam passado juntos. Só viajavam para três lugares: St. Barth no final de janeiro (ainda que ultimamente Will viesse reclamando que era "francês demais"), Palm Springs em meados de março e um fim de semana espontâneo eventual em Key West. Só bebiam gim-tônica em copos Bacará, passavam todas as noites de segunda-feira, das 19h às 23h, no Elaine's e davam uma festa de Natal anual em que ambos usavam suéteres de caxemira de gola olímpica. Will tinha quase l,88m, com o cabelo prateado cortado curto e preferia suéteres com reforços de camurça nos cotovelos. Simon mal tinha l,73m com um corpo magro e atlético que ele vestia inteiramente de linho, desconsiderando as estações.
— Homens gays — ele dizia — têm carta branca para desprezar as convenções da moda. Nós fizemos por merecer.
Mesmo agora, tendo saído há pouco da quadra de tênis, ele conseguira vestir uma espécie de capuz de linho branco.
— Minha linda, como você está? Venha, venha, Will deve estar imaginando onde nós dois estamos e sei que a garota nova preparou algo fantástico para comermos — sempre o perfeito cavalheiro, ele pegou a mochila entupida de coisas do meu ombro, segurou a porta do elevador e apertou CO.
— Como foi o jogo de tênis? — perguntei, imaginando por que esse homem de 60 anos tinha um corpo melhor do que todos os caras que eu conhecia.
— Ah, você sabe como é, um bando de coroas correndo pela quadra, tentando pegar bolas que nem deveriam tentar pegar e fingindo que têm batidas como as de Roddick. Meio ridículo, mas sempre divertido.
A porta para o apartamento deles estava ligeiramente aberta e eu podia ouvir Will falando com a TV no escritório, como sempre. No passado, Will dera o furo da recaída de Liza Minnelli, dos casos de Bob Kennedy e o salto de Patty Hearst de socialite a membro de culto. Foi a "amoralidade" dos Democratas que finalmente o empurrou para a política, em vez de todas as coisas gla-mourosas. Ele o chamava de Golpe do Clinton. Agora, algumas poucas décadas mais tarde, Will era um viciado em notícias com afiliações políticas que se inclinavam ligeiramente para a direita de Átila, o huno. Ele devia ser certamente o único colunista de entretenimento e sociedade gay de direita no Upper West Side de Manhattan que se recusava a comentar tanto entretenimento quanto sociedade. Havia duas televisões em seu estúdio, a maior das quais ele mantinha sintonizada na Fox News.
— Finalmente — gostava de dizer —, uma estação que fala para o meu pessoal.
E sempre a réplica mordaz de Simon:
— Ceeeerto. Aquela audiência enorme de colunistas gays de entretenimento e sociedade, de direita, que moram no Upper West Side de Manhattan.
O aparelho menor sempre girava entre a CNN, a CNN Headline News e a MSNBC, perpetradores do que Will se referia como sendo "A Conspiração Liberal". Um cartaz escrito à mão descansava em cima do segundo televisor. Lia-se: CONHEÇA SEU INIMIGO.
Na CNN, Aaron Brown estava entrevistando Frank Rich a respeito da cobertura da imprensa em torno da última eleição.
— Aaron Brown é um veadinho travado e covarde! — Will rosnou enquanto pousava seu copo de cristal e arremessava um de seus sapatos belgas na TV.
— Oi, Will — falei, pegando um punhado de passas cobertas de chocolate que ele sempre mantinha em uma tigela Orrefors em sua mesa.
— De todas as pessoas qualificadas para discutir política neste país, para oferecer algum insight ou uma opinião inteligente sobre como a cobertura da imprensa afetou ou não as eleições e esses idiotas têm de entrevistar alguém do The New York Times? Aquilo lá é mais sangrento do que um filé mal-passado e eu tenho de ficar sentado aqui ouvindo a opinião deles a respeito disso?
— Bem, na verdade, não, Will. Você pode desligar, sabe — sufoquei um sorriso enquanto seus olhos se mantinham fixos para a frente. Discuti silenciosamente comigo mesma quanto tempo ele levaria para se referir ao The New York Times como Izvestia ou para afirmar que o desastre de Jayson Blair era a prova cabal de que o jornal é lixo, na melhor das hipóteses, e uma conspiração contra os norte-americanos honestos e trabalhadores, na pior.
— O quê? E perder a cobertura ostensivamente dogmática do Sr. Aaron Brown sobre a cobertura ostensivamente dogmática do Sr. Frank Rich sobre o que quer que seja que estejam discutindo? Sério, Bette, não vamos nos esquecer de que esse é o mesmo jornal cujos repórteres simplesmente inventam histórias quando o prazo de entrega aperta.
Ele deu um trago e apontou com o controle remoto para silenciar os dois televisores ao mesmo tempo. Apenas 15 segundos esta noite — um recorde.
— Basta, por enquanto — disse, me abraçando e dando um beijinho rápido na minha bochecha. — Você está linda, querida, como sempre, mas será que morreria se usasse um vestido de vez em quando?
Ele não passou tão habilmente ao seu segundo assunto favorito, a minha vida. Will era nove anos mais velho do que minha mãe e ambos juravam que eram filhos do mesmo casal de pais, mas parecia impossível entender. Minha mãe ficou horrorizada por eu ter aceito um emprego corporativo que exigia que usasse outras roupas que não túnicas e alpargatas e meu tio achava que o ridículo era usar terno como uniforme em vez de um vestido sen-sacional de Valentino ou um par maravilhoso de Louboutins de pulseirinha.
— Will, é o que se usa em bancos de investimento, sabe?
— É o que dizem. Só não achei que você acabaria trabalhando em um banco. — Isso de novo.
— O seu povo, tipo, ama o capitalismo, não ama? — provoquei. — Os republicanos, quero dizer, os gays nem tanto.
Ele ergueu suas sobrancelhas espessas e grisalhas e olhou para mim do outro lado do sofá.
— Que gracinha. Muito bonitinho. Não é nada contra investimentos, querida. Acho que sabe disso. É uma profissão ótima, respeitável — prefiro vê-la fazendo isso do que qualquer um daqueles trabalhos ripongos de salvar o mundo que seus pais recomendariam—, mas você parece jovem demais para se fechar em algo tão entediante. Devia estar lá fora, conhecendo pessoas, indo a festas, curtindo ser jovem e solteira em Nova York, não amarrada a uma mesa em um banco. O que você quer fazer?
Por mais vezes que ele tivesse me perguntado isso, eu nunca tinha conseguido dar uma resposta ótima — ou mesmo decente. Certamente era uma pergunta justa. No segundo grau eu sempre achei que me juntaria ao Corpo de Paz. Meus pais haviam me ensinado que era um passo natural depois de me formar na faculdade. Mas aí, eu fui para Emory e conheci Penelope. Ela gostou do fato de eu não conseguir dizer o nome de todas as escolas particulares em Manhattan e de não saber nada a respeito da ilha Martha's Vineyard, e eu, é claro, amava que ela pudesse e soubesse. Quando as férias de Natal chegaram já estávamos inseparáveis e, ao fim do primeiro ano, eu havia jogado fora minhas camisetas preferidas do Grateful Dead. Jerry, o vocalista da banda, já morrera há muito tempo, de qualquer maneira. E era divertido ir a jogos de basquete e festas regadas a barris de cerveja e entrar para a liga mista de futebol americano com todo um grupo de pessoas que não faziam dreadlocks regularmente no cabelo ou reciclavam a água do banho ou usavam óleo de patchuli. Eu não me destacava como a garota excêntrica que tinha sempre um cheiro meio estranho e sabia coisas demais sobre sequóias canadenses.
Usava os mesmos jeans e camisetas que todo mundo (sem nem olhar para ver se tinham sido feitos numa fábrica de operários semi-escravos) e comia os mesmos hambúrgueres e bebia a mesma cerveja e achava fantástico. Durante quatro anos, tive um grupo de amigos que pensavam parecido e namorados ocasionais, nenhum dos quais era comprometido com o Corpo de Paz. Então, quando todas as grandes empresas apareceram no campus acenando com salários gigantescos e bônus e oferecendo-se para pagar a passagem de avião dos alunos para serem entrevistados em Nova York, eu aceitei. Quase todos os meus amigos da faculdade aceitaram empregos semelhantes, porque, quando você analisa direito, de que outra forma uma pessoa de vinte anos de idade vai pagar um aluguel em Manhattan? O incrível nisso tudo era como cinco anos haviam passado rápido. Cinco anos haviam simplesmente desaparecido em um buraco negro de programas de treinamento e relatórios trimestrais e bônus de final de ano, mal me deixando tempo para pensar que eu odiava o que fazia o dia inteiro. O fato de ser boa naquilo não ajudava — de certa forma, parecia significar que eu estava fazendo a coisa certa. No entanto, Will sabia que estava errado, podia obviamente intuir, mas até agora eu havia sido complacente demais para dar um salto para outra coisa.
— O que eu quero fazer? Como posso responder a uma coisa dessas? — perguntei.
— Como pode não responder? Se não sair em breve, vai acordar um dia quando tiver 40 anos e for diretora de operações e pular de uma ponte. Não há nada errado com investimentos, querida, só não é para você. Você devia estar perto de pessoas. Devia rir um pouco. Você devia escrever. E devia estar usando roupas muito melhores.
Eu não contei a ele que estava pensando em procurar trabalho em uma empresa sem fins lucrativos. Ele começaria a discursar sobre como sua campanha para desfazer a lavagem cerebral de meus pais havia fracassado e ficaria sentado desanimado à mesa o resto da noite. Eu tentara uma vez, apenas mencionara que estava pensando em fazer uma entrevista na organização de planejamento familiar Planned Parenthood e ele me informou que, ainda que fosse uma idéia das mais nobres, me levaria direto de volta ao, em suas palavras, Universo dos Grandes Mal Lavados. En-tão, continuamos a falar sobre os tópicos de sempre. Primeiro veio minha vida amorosa inexistente ("Querida, você é simplesmente jovem demais e bonita demais para que o trabalho seja seu único amante"), seguido por um discursinho a respeito da última coluna do Will ("É culpa minha que Manhattan tenha se tornado tão ignorante que as pessoas não queiram mais saber a verdade sobre seus governantes eleitos?"). Voltamos aos meus dias de ativismo político no segundo grau ("A Era do Incenso, graças a Deus, já acabou") e aí, mais uma vez, retornamos ao assunto favorito de todos, o estado abjeto do meu guarda-roupa ("Calças masculinas mal cortadas não são roupa para um encontro").
Quando ele estava começando um pequeno solilóquio sobre os extensos benefícios de se ter um conjunto Chanel, a empregada bateu na porta do escritório para nos informar que o jantar estava servido. Recolhemos nossos drinques e nos dirigimos à sala de jantar formal.
— Dia produtivo? — Simon perguntou a Will, cumprimen-tando-o com um beijo na bochecha. Ele havia tomado banho e vestido um pijama de linho ao estilo de Hugh Heffner e segurava uma taça de champanhe.
— É claro que não—Will respondeu, colocando de lado seu martíni e servindo mais duas taças de champanhe. Entregou uma a mim.
— O prazo de entrega é só à meia-noite, por que eu faria qualquer coisa antes das 22h? O que estamos comemorando?
Comecei a devorar minha salada com gorgonzola, grata por estar comendo algo que não vinha de um carrinho na rua, e tomei um gole de champanhe. Se conseguisse, de alguma forma, comer lá todas as noites sem parecer ser a maior fracassada da face da Terra, eu o teria feito em um segundo. Mas até eu tinha dignidade o suficiente para saber que estar disponível para as mesmas pessoas — mesmo que eles fossem o seu tio e seu companheiro — mais do que uma vez por semana para jantar e uma para o brunch era realmente triste.
— O quê, precisamos estar comemorando alguma coisa para tomarmos um pouco de champanhe? — Simon perguntou, servindo-se de alguns pedaços do filé fatiado que a empregada fizera como prato principal. — Só achei que seria uma mudança agradável. Bette, quais são seus planos para o resto da noite?
— A festa de noivado da Penelope. Tenho de ir para lá daqui a pouco, para falar a verdade. As mães organizaram tudo juntas antes que Avery ou Penelope pudessem vetar. Pelo menos é em alguma boate em Chelsea, em vez de em algum lugar no Upper East Side — acho que essa foi a única concessão para que seus filhos pudessem se divertir.
— Qual é o nome da boate? — Will perguntou, ainda que fossem poucas as chances de que ele tivesse ouvido falar nela, se não fosse escura, com paredes forradas de madeira e cheia de fumaça de charuto.
— Ela falou, mas eu não me lembro. Começa com B, eu acho. Aqui — falei, puxando um pedaço de papel rasgado da bolsa. — É na rua 27, entre a Décima e a Décima Primeira. Chama-se...
— Bungalow 8 — responderam em uníssono.
— Como é que vocês dois sabiam disso?
— Querida, ela é mencionada com tanta freqüência nas fofocas da Página Seis que você fica achando que Richard Johnson é o dono do maldito lugar — Will falou.
— Li em algum lugar que, originalmente, era uma cópia dos bangalôs do Beverly Hills Hotel, e que o serviço é tão bom quanto. É só uma boate, mas a matéria descrevia um serviço que realiza qualquer capricho, desde encomendar um tipo especial de sushi raro a arrumar um helicóptero. Há lugares que são o máximo durante alguns meses e depois desaparecem, mas todo mundo concorda que o Bungalow 8 tem poder para ficar—Simon disse.
— Acho que ficar sentada no Black Door nas noites em que saio não está ajudando muito minha vida social — falei e empurrei meu prato para longe. — Vocês se incomodam se eu sair cedo hoje? Penelope queria que eu chegasse lá antes que as hordas de amigos do Avery e a família dela chegassem.
— Corra, Bette, corra. Pare apenas para passar mais batom e depois corra! E não faria mal algum se encontrasse um jovem bonitão para sair — Simon declarou, como se fosse haver salas repletas de caras lindos e solteiros que estariam apenas esperando que eu entrasse em suas vidas.
— Ou, melhor ainda, um filho-da-mãe deslumbrante para brincar por uma noite — Will piscou, brincando só um pouco.
— Vocês são o máximo—falei, beijando a bochecha de cada um antes de pegar minha bolsa e meu cardigã. — Não têm nenhum escrúpulo em prostituir sua única sobrinha, não é?
— Absolutamente nenhum — Will anunciou, enquanto Simon balançava a cabeça com gravidade. — Vá ser uma vagabunda boazinha e divirta-se, pelo amor de Deus.

Havia uma multidão — três filas até o final do quarteirão — quando o táxi parou na frente da boate e, se não fosse pela festa de Penelope, eu teria pedido ao motorista para continuar dirigindo. Em vez disso, colei um sorriso no rosto e andei até a frente da fila de quarenta pessoas, onde um cara enorme, usando um ponto de ouvido igual ao do Serviço Secreto estava segurando uma prancheta.
— Oi, meu nome é Bette e estou na lista da Penelope — eu disse, checando a fila sem reconhecer um único rosto.
Ele olhou para mim inexpressivamente.
— Ótimo, é um prazer, Penelope. Se puder esperar na fila como todo mundo, nós a colocaremos para dentro assim que possível.
— Não, a festa é da Penelope e eu sou amiga dela. Ela me pediu para chegar cedo, então seria melhor se eu pudesse entrar agora.
— Ahã, isso é ótimo. Ouça, só chegue para o lado e... — ele pôs a mão por cima do fone de ouvido e pareceu escutar atentamente, balançando a cabeça algumas vezes e estudando a fila que agora dobrava a esquina.
— Muito bem, pessoal — anunciou, sua voz causando um silêncio imediato entre os futuros festeiros em trajes sumários. — Já estamos com a lotação esgotada no momento, como determinado pelo Corpo de Bombeiros de Nova York. Só vamos deixar pessoas entrarem conforme outras forem saindo, portanto fiquem à vontade ou voltem depois.
Gemidos por todos os lados. "Bem, isso simplesmente não vai dar certo", eu pensei. "Ele não deve estar entendendo a situação."
— Com licença? Senhor? — ele deu mais uma espiada para mim, agora visivelmente aborrecido. — É claro que o senhor tem muita gente esperando para entrar, mas é a festa de noivado da minha amiga e ela realmente precisa de mim, se o senhor conhecesse a mãe dela, entenderia quanto eu preciso entrar.
— Hmmm. Interessante. Olhe, não quero saber se a sua ami-ga Penelope vai se casar com o príncipe William. Não posso deixar ninguém entrar agora de jeito nenhum. Estaríamos violando o código de incêndio e você certamente não quer isso — ele chegou só um pouco para trás. — Espere na fila e nós a poremos para dentro assim que possível, está bem?
Acho que ele estava tentando me acalmar, mas aquilo só servia para me exasperar mais. Ele me parecia ligeiramente familiar, ainda que eu não tivesse certeza por quê. A camiseta verde des-botada era justa o suficiente para mostrar que ele era bem capaz de manter as pessoas fora se assim o desejasse, mas o jeans ligeiramente frouxo de cintura baixa sugeria que não se levava muito a sério. Bem no momento em que eu estava admitindo que ele tinha o melhor cabelo que eu já vira em um cara — de comprimento médio, escuro, grosso e instantemente brilhante —, ele vestiu uma jaqueta de veludo cotelê cinza e conseguiu ficar ainda mais bonito.
Definitivamente um modelo. Me contive para não declarar algo superarrogante sobre como isso deve ser uma onda de poder para alguém que muito provavelmente não passou da sétima série, e saí de fininho para o fim da fila. Como as repetidas tentativas de ligar tanto para o celular de Avery quanto para o de Penelope caíram direto na caixa postal e o valentão da porta só estava permitindo em média duas pessoas a cada dez minutos, fiquei ali quase uma hora. Estava fantasiando sobre as várias maneiras pelas quais poderia humilhar ou de alguma forma prejudicar o segurança, quando Michael e sua namorada se esgueiraram para fora e acenderam cigarros a alguns metros da porta.
— Michael — gritei, consciente de quanto parecia patética, mas sem me importar de verdade. — Michael, Megu, aqui!
Os dois olharam para a horda de pessoas e me viram, o que provavelmente não foi difícil, visto que eu estava gritando e acenando com dignidade zero. Eles acenaram para me aproximar e eu praticamente corri até eles.
— Eu preciso entrar. Estou do lado de fora deste maldito buraco há um tempão e aquele cara não me deixa entrar. A Penelope vai me matar!
— Ei, Bette, que bom vê-la também! — Michael falou, debruçando-se para beijar minha bochecha.
— Me desculpe — eu disse, abraçando-o primeiro e depois sua namorada, Megu, a doce estudante japonesa de medicina com quem ele agora dividia um apartamento. — Como estão? Como é que vocês saíram para fazer isso?
— Acontece tipo uma vez a cada seis meses. — Megu sorriu, pegando a mão de Michael e enfiando-a nas costas. — O cronograma se alinha por um período de 12 horas quando eu não estou de plantão e ele não está trabalhando.
— E vieram para cá? O que foi, ficaram malucos? Megu, você realmente é muito gente boa. Michael, sabe que garota você tem aqui?
— Claro que sei — ele disse, olhando com adoração para ela. —Ela sabe que a Penelope também me mataria se nós não viéssemos, mas acho que vamos embora. Tenho que estar no trabalho em, ah, vejamos, quatro horas, e a Megu tinha esperanças de dormir seis horas seguidas pela primeira vez em algumas semanas, então vamos dar o fora. Parece que as pessoas estão entrando agora.
Virei-me e vi uma enorme troca de pessoas lindas: uma multidão estava saindo, aparentemente a caminho de uma festa "de verdade" em TriBeCa, e outra atravessou porta adentro quando o segurança levantou o cordão de veludo.
— Achei que você tinha dito que eu era a próxima da lista — falei secamente para o segurança.
— Fique à vontade para visitar a princesa Penelope — ele me falou, fazendo um gesto grandioso com um dos braços e ajeitando o fone de ouvido com o outro, para ouvir o que, tenho certeza, eram informações cruciais.
— Viu, pronto—Michael disse, puxando Megu consigo para a rua. — Ligue-me esta semana e vamos tomar uns drinques. Traga a Penelope; nem tive a oportunidade de falar com ela hoje e já faz muito tempo que a gente não se encontra. Despeça-se dela por mim—e aí eles se foram, certamente felizes por terem conseguido escapar.
Olhei em volta e vi que havia apenas algumas pessoas paradas na calçada, falando ao celular, parecendo não ligar se iam entrar ou não. De uma hora para a outra, a multidão havia evaporado e eu estava sendo autorizada a entrar.
— Nossa, obrigada. Você foi de uma ajuda inacreditável — falei para o segurança, passando apertado por seu corpo gigantesco e pelo cordão de veludo que ele segurava aberto. Abri a enorme porta de vidro e entrei em um saguão escuro, onde Avery estava falando muito de perto com uma garota muito bonita com seios muito grandes.
— Oi, Bette, onde esteve a noite toda? — ele disse, andando imediatamente na minha direção e oferecendo-se para guardar meu casaco. No mesmo segundo, Penelope surgiu, parecendo afogueada e depois aliviada. Ela estava usando um tubinho preto curto com um bolero de lantejoulas e sandálias prateadas de saltos extremamente altos, e eu soube imediatamente que sua mãe havia escolhido a roupa.
— Bette — ela sibilou, agarrando meu braço e me levando para longe de Avery, que retomou imediatamente sua conversa intensa com a garota. — Por que demorou tanto? Passei a noite sofrendo sozinha.
— Sozinha? Deve haver umas duzentas pessoas aqui. Todos esses anos e eu não sabia que você tinha duzentos amigos. Esta é uma festa e tanto!
— É, impressionante, não é? Exatamente cinco pessoas neste aposento estão aqui para me ver: minha mãe, meu irmão, uma das garotas do departamento de imóveis, a secretária do meu pai e agora você. Megu e Michael foram embora, certo? — eu assenti. — O restante são amigos do Avery, é claro. E os amigos da minha mãe. Onde você esteve? — ela tomou um gole de seu drinque e me passou o copo com as mãos ligeiramente trêmulas, como se fosse um cachimbo e não uma taça de champanhe.
— Querida, estou aqui há mais de uma hora, como prometi. Tive uns probleminhas na porta.
— Não! — ela parecia horrorizada.
— É. O segurança é muito gato, mas é um idiota.
— Ah, Bette, eu sinto muito! Por que não me ligou?
— Liguei algumas dezenas de vezes, mas acho que você não ouviu o telefone. Ouça, não se preocupe com isso. Esta noite é sua, então tente, bem, se divertir.
— Vamos pegar uma bebida para você — ela falou, pegando um Cosmopolitan da bandeja de um garçom que passava. —Está acreditando nesta festa?
— Está uma loucura. Há quanto tempo sua mãe está planejando isso?
— Ela leu na Página Seis há semanas que a Gisele e o Leo foram vistos "aos beijinhos" aqui, então acho que ligou e fez a reserva logo depois disso. Ela vive me dizendo que este é o tipo de lugar que eu deveria freqüentar, por causa de sua "clientela exclusiva". Eu não contei a ela que a única vez que Avery me arrastou para cá a clientela estava basicamente transando na pista de dança.
— Provavelmente só a teria estimulado mais.
— Verdade. — Uma mulher alta como uma modelo se enfiou entre nós duas e deu dois beijinhos sem encostar em Penelope, de uma forma tão falsa que eu me encolhi, engoli meu Cosmopolitan e saí de fininho. Fui puxada para uma conversa sem sal com algumas pessoas do banco que haviam acabado de chegar e que pareciam ligeiramente em choque por estarem longe de seus computadores, e conversei o mínimo possível com a mãe de Penelope, que mencionou imediatamente o conjunto e os sapatos Chanel que estava usando e então puxou Penelope pelo braço para outro grupinho de pessoas. Olhei a multidão vestida com roupas de grife e tentei não me encolher dentro da minha roupa, que fora comprada on-line de um misto de J. Crew e Banana Republic às três da manhã há alguns meses. Will ultimamente andava insistindo muito que eu precisava de "roupas para sair", mas os catálogos de remessa não eram exatamente o que ele havia pensado. Tive a sensação de que qualquer daquelas pessoas poderia se sentir — e se sentiria — perfeitamente à vontade andando nuas por aí.
Ainda melhor do que as roupas (que eram perfeitas) era a confiança, e isso vinha de um lugar completamente diferente. Duas horas e três Cosmopolitans depois, atestadamente de pileque, eu estava pensando em ir para casa. Em vez disso, peguei mais uma bebida e fui para fora.
A fila para entrar desaparecera completamente; só o segurança que me mantivera no purgatório das boates por tanto tempo ainda estava lá. Eu estava preparando minhas observações irônicas caso ele tentasse falar comigo, mas ele só sorriu e voltou sua atenção para o livro que estava lendo, que parecia uma caixa de fósforos em suas mãos enormes. Era uma pena ele ser tão gato — mas os imbecis sempre eram.
— Então, do que em mim você não gostou? — não consegui me controlar. Cinco anos na cidade e eu ainda tentava evitar lugares com seguranças na porta ou cordões de veludo, a não ser que fosse absolutamente necessário. Herdara pelo menos um pouco da virtuosidade igualitária de meus pais — ou uma insegurança intensa, dependendo de como você encarasse.
— Perdão?
— Quer dizer, quando você não me deixou entrar antes, apesar de ser a festa de noivado da minha melhor amiga.
Ele balançou a cabeça e meio que sorriu para si mesmo.
— Olhe, não é nada pessoal. Eles me dão uma lista e me dizem para segui-la e para controlar a multidão. Se você não estiver na lista ou aparecer ao mesmo tempo que mais cem pessoas, tenho de deixá-la de fora por um tempinho. Realmente, é só isso.
— Claro — eu quase perdera a grande noite da minha melhor amiga por causa da política de entrada dele. Eu hesitei um pouco e então falei entre dentes: — Nada pessoal. Sei.
— Você acha que preciso do seu sarcasmo hoje? Tenho muitas pessoas que são muito melhores em me encher o saco, então por que você não pára de falar e eu a ponho em um táxi?
Talvez tenha sido o quarto Cosmopolitan — coragem líquida —, mas eu não estava a fim de lidar com a atitude condescendente dele, então dei meia-volta em meus saltos roliços demais e abri a porta.
— Não preciso da sua caridade. Obrigada por nada — falei e marchei de volta para dentro da boate da maneira mais sóbria que consegui.
Abracei Penelope, dei beijinhos em Avery e então tracei uma reta até a porta antes que alguém pudesse começar mais uma con-versinha. Vi uma garota agachada em um canto, chorando baixinho, mas agradavelmente consciente de que outras pessoas a estavam vendo e me desviei de um casal de estrangeiros extremamente elegante que estava se agarrando furiosamente, pegando muito nos quadris. Aí, fiz um grande espetáculo ao ignorar o imbecil do segurança que, por acaso, estava lendo uma versão de bolso, aos pedaços, de O amante de lady Chatterley (tarado!) e joguei o braço para cima para chamar um táxi. Só que a rua estava completamente vazia, e uma garoa fria começara a cair, praticamente garantindo que não haveria nenhum táxi num futuro próximo.
— Ei, precisa de ajuda? — ele perguntou, depois de abrir o cordão de veludo para deixar entrar três garotas falando alto e cambaleando. — É difícil pegar um táxi nesta rua quando chove.
— Não, obrigada, eu estou bem.
— Como quiser.
Os minutos estavam começando a parecer horas e o chuvisco quente de verão rapidamente se transformara em uma chuva fria e persistente. O que, exatamente, eu estava provando? O segurança se encostara contra a porta para se proteger um pouco dos respingos e ainda estava lendo tranqüilamente, como se não tivesse consciência do furacão que agora nos chicoteava. Continuei a encará-lo até ele olhar para cima, sorrir e dizer:
— É, você parece estar indo muito bem sozinha. Está realmente me dando uma lição ao não pegar um desses guarda-chuvas enormes e andar alguns quarteirões até a Oitava Avenida, onde não vai ter o menor problema para pegar um táxi. Ótima decisão você tomou.
— Você tem guarda-chuva? — perguntei antes que pudesse me conter. A água ensopara completamente a minha blusa e eu podia sentir meu cabelo grosso como um cobertor grudando no meu pescoço em chumaços molhados e frios.
— Claro que tenho. Eu os guardo bem aqui, para situações como esta. Mas tenho certeza de que você não está interessada em pegar um, não é?
— Isso. Eu estou ótima — pensar que eu quase havia começado a gostar dele. Justo nesse momento, um táxi de cooperativa passou e eu tive a brilhante idéia de ligar para o serviço de táxi do UBS para pedir um carro para ir para casa.
— Oi, aqui é Bette Robinson, número da conta 6338. Preciso que um carro me pegue na...
— Tudo ocupado! — latiu de volta uma operadora de voz zangada.
— Não, acho que você não entendeu. Eu tenho uma conta na sua empresa e...
Clique.
Fiquei parada ali, ensopada, a raiva fervendo dentro de mim.
— Não têm carros, não é? É duro — ele falou, cacarejando solidariamente sem tirar os olhos do livro. Eu conseguira ler por alto O amante de lady Chatterley quando tinha 12 anos e já havia reunido o possível sobre sexo da combinação Forever, Wifey e O que está acontecendo com o meu corpo? Livro para meninas, mas não me lembrava de nada sobre o livro. Talvez tivesse a ver com memória fraca ou talvez fosse o fato de que sexo não fora nem uma parte da minha consciência nos últimos dois anos. Ou talvez fosse porque os enredos de meus adorados romances entupiam o meu pensamento o tempo inteiro. O que quer que fosse, eu nem conseguia pensar em algo sarcástico para dizer a respeito, que dirá algo inteligente.
— Não têm carros — suspirei. — Não é a minha noite. Ele deu alguns passos na chuva e me entregou um grande guarda-chuva executivo, já aberto, com a logomarca da boate estampada dos dois lados.
— Pegue. Ande até a Oitava Avenida e, se ainda não conseguir pegar um táxi, fale com o segurança na porta do Serena, na rua 23, entre a Sétima e a Oitava. Diga-lhe que eu a mandei e ele vai resolver tudo.
Pensei em passar direto por ele e pegar o metrô, mas a idéia de andar de trem à uma da manhã não era muito atraente.
— Obrigada — balbuciei, recusando-me a olhar no que se-riam seus olhos exultantes. Peguei o guarda-chuva e comecei a andar para o Leste, sentindo-o me observar pelas costas.
Cinco minutos depois, eu estava enroscada no banco de trás de um grande táxi amarelo, molhada, mas finalmente quente.
Dei meu endereço para o motorista e despenquei para trás, exausta. A essa hora, táxis eram bons para duas coisas e só para duas coisas: se agarrar com alguém no caminho para casa depois de uma noite divertida ou saber das fofocas com várias pessoas em conversas de três-minutos-ou-menos pelo celular. Já que nenhum dos dois era uma opção, descansei meu cabelo molhado no pedaço de vinil sujo onde tantas cabeças oleosas, sujas, gorduro-sas, cheias de piolhos e genericamente maltratadas haviam descansado antes da minha, fechei os olhos e antecipei as boas-vindas fungantes e histéricas que receberia em breve de Millington. Quem precisava de um homem — ou mesmo de uma melhor amiga recém-noiva — quando tinha um cachorro?

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